LIDERAR É DESEJAR: UMA LEITURA PSICANALÍTICA DA LIDERANÇA EDUCACIONAL

1. A gênese do desejo e o nascimento do sujeito
Sigmund Freud, ao inaugurar a psicanálise no final do século XIX, introduziu uma revolução epistemológica: o homem não é senhor em sua própria casa. Nossas decisões, crenças e afetos são constantemente atravessados por forças inconscientes. Entre elas, o desejo ocupa lugar central, não como simples vontade ou carência, mas como a energia psíquica que nos move na busca do reconhecimento e da completude que jamais se alcança.
Em “Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade” (1905), Freud propôs que o desejo humano é estruturado pela falta e orientado pela alteridade. O sujeito só se constitui como tal na relação com o outro. É nesse contexto que emerge a célebre formulação: “eu só me torno uma pessoa quando sou o desejo de alguém”. A identidade, portanto, não é autossuficiente, é relacional.
Essa concepção desvela o pano de fundo de toda relação de liderança: o líder e o liderado estão enredados em uma trama de desejos recíprocos e projeções inconscientes. Liderar é, inevitavelmente, lidar com o desejo, o próprio e o dos outros.
2. O inconsciente na dinâmica da liderança
Freud, em Psicologia das Massas e Análise do Eu (1921), já observava que os grupos são constituídos por vínculos libidinais e por identificações afetivas com a figura de liderança. O líder, simbolicamente, torna-se o centro de coesão do grupo, depositário de ideais e frustrações. Assim, a liderança não se exerce apenas por autoridade formal, mas pela economia do desejo que circula entre os sujeitos.
Cada decisão, cada conflito, cada gesto de reconhecimento carrega dimensões inconscientes que escapam à racionalidade administrativa. Por isso, a psicanálise nos ensina que não há liderança puramente técnica ou objetiva: toda liderança é também afetiva, simbólica e, em certa medida, transferencial.
Jacques Lacan (1953) reforça essa ideia ao formular que “o desejo do homem é o desejo do outro”. O líder deseja ser reconhecido; o grupo deseja ser conduzido. Ambos se constituem reciprocamente no espelho do desejo. Nesse jogo, o perigo surge quando o líder perde a autonomia de seu próprio desejo e passa a se guiar apenas pelo olhar do outro, pela necessidade de aprovação, pela busca incessante de admiração ou de controle. A liderança, então, adoece: transforma-se em narcisismo, dependência e exaustão simbólica.
3. Transferência, projeção e repetição: o triângulo inconsciente das relações de poder
Freud, em A dinâmica da transferência (1912), mostrou que toda relação interpessoal carrega repetições de vínculos primários. O sujeito transfere sobre figuras de autoridade afetos e expectativas inconscientes originados nas relações com os pais. No contexto educacional, isso é ainda mais evidente: o líder é muitas vezes investido como uma figura parental, aquele que acolhe, pune, orienta e garante o sentido.
O fenômeno da transferência é inevitável e, quando compreendido, pode ser uma poderosa ferramenta de gestão. O líder consciente dessas dinâmicas não reage impulsivamente às idealizações ou críticas, mas as interpreta como manifestações simbólicas do grupo. Ele compreende que cada resistência pode esconder medo, e cada silêncio pode expressar lealdade inconsciente a padrões antigos.
Por outro lado, quando o líder ignora o inconsciente, torna-se refém da projeção: vê nos outros aquilo que não reconhece em si mesmo. Assim, um gestor que teme o conflito tende a rotular seus subordinados como “difíceis”; aquele que reprime a própria insegurança tende a controlar excessivamente. O desconhecimento de si gera a repetição, outro conceito freudiano fundamental (Além do Princípio do Prazer, 1920). Repetimos, na organização, as mesmas defesas que um dia nos protegeram na infância.
Liderar, portanto, é interromper o ciclo da repetição inconsciente por meio da consciência reflexiva. É substituir a reação automática pela interpretação simbólica. O líder maduro não responde apenas ao sintoma; ele lê o sentido.
4. O líder educacional como sujeito do cuidado
No universo da educação, essa leitura se torna especialmente relevante. O gestor escolar não apenas coordena processos pedagógicos ou administrativos. Mais do que isso, ele sustenta vínculos humanos profundamente atravessados por afetos, idealizações e transferências. A escola é um espaço simbólico de grande densidade emocional: é nela que se projetam sonhos, frustrações e desejos coletivos.
Winnicott (1960), ao falar do ambiente facilitador, descreve o papel do adulto que sustenta o crescimento do outro sem sufocá-lo. Esse conceito pode ser transposto para a liderança educacional: o bom líder é aquele que oferece segurança para que o grupo se desenvolva, sem roubar-lhe a autonomia. Ele é, simultaneamente, continente e espelho. Acolhe, mas devolve; escuta, mas também confronta.
Tal posição exige maturidade psíquica e autoconhecimento emocional. Sem eles, o líder pode confundir cuidado com controle, empatia com fusão afetiva, escuta com submissão. A liderança educativa, quando imatura, tende a produzir dependência; quando consciente, promove emancipação.
Como observa René Kaës (1997), as instituições funcionam como aparelhos psíquicos grupais, dotados de seus próprios fantasmas, medos e desejos. O líder educacional, nesse contexto, é o intérprete desses conteúdos coletivos. Sua função vai além da gestão: é a de dar sentido, transformar pulsões dispersas em propósito comum.
5. O autoconhecimento como ferramenta de gestão
Em tempos de discursos superficiais sobre “inteligência emocional” e “autogestão”, a psicanálise nos oferece um caminho mais profundo: o autoconhecimento como travessia ética. Freud (1930) afirmava que a cultura exige de nós um permanente trabalho psíquico para conter impulsos e transformar pulsões em criação, processo chamado de sublimação.
No contexto da liderança, a sublimação se expressa na capacidade de converter emoções brutas, raiva, medo, inveja e vaidade, em ações simbólicas produtivas: reconhecimento, escuta, planejamento, mediação. O líder que se conhece é aquele que transforma o afeto em decisão lúcida.
Esse processo não se dá de forma espontânea: requer análise constante, escuta de si e disposição para o desconforto. Como lembra Bion (1961), “a função do líder é suportar a ansiedade do grupo sem sucumbir a ela”. O líder educacional precisa sustentar a incerteza, sem buscar respostas rápidas ou soluções mágicas. Seu papel é criar sentido no meio do caos.
6. Desejo, poder e ética na liderança educacional
Liderar implica ocupar um lugar de poder simbólico, mas, à luz da psicanálise, poder e desejo são indissociáveis. Lacan (1969-70), em “O Seminário, livro 17: o avesso da psicanálise”, afirma que toda relação de poder é também uma economia do gozo. O risco, portanto, é o gozo do poder pelo poder, o prazer inconsciente de dominar, controlar ou ser admirado.
A ética da liderança educacional exige que o desejo do líder esteja a serviço do propósito, e não do ego. É nesse ponto que a psicanálise se torna ferramenta de discernimento: ajuda-nos a distinguir o desejo autêntico de servir do desejo narcísico de ser amado.
O líder ético é aquele que renuncia à onipotência e reconhece seus próprios limites. Ele compreende que o verdadeiro comando nasce da escuta; que autoridade não é domínio, mas presença simbólica. Compreende que educar, como liderar, é, acima de tudo, um ato de amor mediado pela falta, não pela posse.
7. Liderar é desejar, mas saber o que se deseja
Chegamos, então, ao ponto crucial: liderar é desejar, mas é preciso saber o que se deseja. O líder que desconhece seu próprio desejo corre o risco de ser guiado pelos desejos alheios: da equipe, da instituição, do mercado, do público. Nesse movimento, perde o eixo e torna-se refém do olhar do outro.
A liderança educacional, por lidar com pessoas e significados, é um terreno fértil para esse desvio. O gestor pode ser seduzido pela necessidade de aprovação constante, pelo desejo de ser “amado pelos professores”, “admirado pelos pais” ou “indispensável aos superiores”. Contudo, como ensina a psicanálise, o reconhecimento externo é sempre transitório; o sentido autêntico nasce da coerência interna.
Por isso, o autoconhecimento é mais que um requisito emocional, é um ato de responsabilidade institucional. Líderes que se escutam constroem instituições mais saudáveis, relações mais autênticas e culturas organizacionais mais sustentáveis.
8. Conclusão: o desejo como força transformadora
O desafio do líder educacional contemporâneo é unir técnica e subjetividade, estratégia e escuta, gestão e simbolismo. A psicanálise oferece um mapa para essa travessia: compreender que o outro não é objeto de controle, mas sujeito de desejo.
O verdadeiro poder de liderar não está na hierarquia, mas na capacidade de transformar o desejo individual em sentido coletivo. E isso só é possível quando o líder se permite olhar para dentro, reconhecer-se, reconstruir-se, e, sobretudo, desejar com consciência.
Freud nos ensina que o homem é movido por forças que ele não domina. Lacan, por sua vez, acrescentou que o sujeito só existe no desejo do outro. Winnicott, todavia, mostrou que o cuidado é a base da existência.
A liderança educacional, então, é o ponto de encontro desses três legados: o inconsciente que pulsa, o desejo que orienta e o cuidado que sustenta.
Antes de encarar sua jornada diária, talvez valha o convite: desliga o automático. Olha para dentro. Entende o que o move. Porque o verdadeiro poder de liderar não vem de fora, vem do desejo de fazer sentido.
Referências,
BION, Wilfred. Experiências em grupos. Rio de Janeiro: Imago, 1961.
FREUD, Sigmund. Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade. 1905.
FREUD, Sigmund. A dinâmica da transferência. 1912. FREUD, Sigmund. Psicologia das Massas e Análise do Eu. 1921.
FREUD, Sigmund. Além do Princípio do Prazer. 1920.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. 1930.
KAËS, René. O grupo e o sujeito do grupo. São Paulo: Casa do Psicólogo, 1997.
LACAN, Jacques. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. 1953.
LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 17: O avesso da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1992.
WINNICOTT, Donald. O ambiente e os processos de maturação. Rio de Janeiro: Imago, 1960.




