LIDERANÇA ESCOLAR E GESTÃO DO TEMPO: ESTRATÉGIAS PARA EQUILÍBRIO E PRODUTIVIDADE

José Ricardo Mole • 4 de setembro de 2025
Pessoa tocando uma ampulheta digital e relógios, simbolizando gerenciamento de tempo e prazos.

1. INTRODUÇÃO


A pressão por “fazer mais em menos tempo” convive com calendários saturados e ambientes digitais hiperestimulantes. A evidência indica que, na prática, “acelerar” via multitarefa derruba a qualidade cognitiva do trabalho: quem alterna demais de foco filtra pior distrações, carrega mais “resíduos atencionais” e comete mais erros. Para escolas, isso se traduz em docentes e equipes administrativas que trabalham mais horas, mas não necessariamente entregam melhor, porque as condições de foco foram minadas.


Do ponto de vista neurológico e comportamental, trocar de tarefa exige “reconfiguração” de metas e regras mentais, processo com custo de tempo e energia; esse custo cresce quando as tarefas competem por recursos cognitivos similares. Em outras palavras: toda interrupção cobra pedágio cognitivo. Em gestão escolar, isso se agrava por agendas fragmentadas (aulas, conselhos, atendimentos, plataformas).


2. COMO A ANSIEDADE E O BURNOUT SURGEM DO DESCONTROLE DO TEMPO


A OMS classifica o Burnout como fenômeno ocupacional decorrente de estresse crônico não gerenciado, com exaustão, distanciamento mental do trabalho e queda de eficácia profissional, um quadro frequente em educação sob alta carga e pouco controle sobre o tempo. Ambientes com alta interrupção e prazos comprimidos elevam estresse e pioram sono e humor.


Para líderes, a lógica é estratégica: controle de agenda = controle de risco. Equipes com rituais de foco, pausas e fronteiras digitais apresentam menor estresse e melhor satisfação, condição necessária para resultados pedagógicos sustentáveis e retenção de talentos docentes.


3. IMPACTO DA GESTÃO DO TEMPO NA SAÚDE MENTAL


3.1. Estresse crônico: causas e sintomas


Estresse crônico nasce quando demandas superam recursos (tempo, autonomia, suporte) e quando o trabalho é conduzido sob interrupção contínua. Sinais típicos: irritabilidade, ruminação, insônia, lapsos de atenção. Estudos em “trabalho do conhecimento” mostram que interrupções elevam velocidade com mais estresse, mas degradam a qualidade do output e a consistência do foco.


Em educação, “pressa sem foco” tende a gerar retrabalho, decisões reativas e desgaste cumulativo, uma espiral cara para a instituição e para as pessoas. Diagnosticar e remover fontes de interrupção é, portanto, medida de saúde organizacional.


3.2. Benefícios psicológicos do planejamento consciente


Revisões de literatura indicam que comportamentos de gestão do tempo se associam a maior controle percebido, satisfação e menos estresse. Programas de treinamento em gestão do tempo elevam organização e autoeficácia e podem reduzir ansiedade, ainda que os efeitos em desempenho “duro” variem conforme o desenho do trabalho. Para escolas, o ganho prático é criar previsibilidade e “datas de decisão” que estabilizam o dia a dia.


No nível individual, listas breves por prioridade, janelas sem reunião para tarefas cognitivas profundas e revisão semanal com trade-offs explícitos combinam ciência da atenção com realismo operacional.


3.3. Rotina estruturada e bem-estar em educação


Entre professores, mindfulness e práticas de regulação atencional em programas dedicados (p. ex., CARE) reduziram estresse e Burnout em ensaios randomizados, com efeitos também em humor no trabalho, sono e clima socioemocional de sala. Tais intervenções funcionam melhor quando acopladas a mudanças de agenda (menos interrupção, mais foco).


Há também ganhos fisiológicos quando se contém e-mails e picos de notificações: ao cortar e-mail por alguns dias ou reduzir sua frequência, colaboradores exibiram menores níveis de estresse (variabilidade da frequência cardíaca), além de relatar maior foco, dado com implicações diretas para a rotina escolar digital.


4. A FALÁCIA DA MULTITAREFA


4.1. Origem do mito


A crença de que “fazer tudo ao mesmo tempo” é eficiente nasce de duas ilhas de verdade: (a) tarefas automáticas podem coexistir (andar e conversar), e (b) alternar rápido parece ser produtividade. A literatura cognitiva, porém, demonstra que atividades que exigem controle executivo competem entre si, e alternar custa. Em escolas, isso se manifesta em docentes tentando corrigir avaliações, responder mensagens e preparar aula simultaneamente, com piora mensurável de atenção.


4.2. O custo da troca constante de foco


Clássicos da psicologia experimental mostram que task switching envolve etapas de “mudança de meta” e “ativação de regra”, cada qual com latências que somam atraso e erros; esse custo não some com prática. A “resíduo atencional” persiste após cada troca, reduzindo a plena presença na nova tarefa. Para o ensino, isso significa que janelas de foco indiviso para planejamento e correção são mais produtivas do que “picotar” o tempo.

 

4.3. Evidências sobre queda de desempenho e aumento de erros


Multitarefadores pesados em mídia tendem a filtrar pior distrações e a ter menor controle executivo, embora réplicas mostrem resultados mistos, o que reforça que o contexto organizacional (interrupções, regras de agenda) é peça-chave. Na prática, reduzir pontos de distração melhora qualidade do trabalho cognitivo em qualquer cenário.


5. TÉCNICAS PRÁTICAS E FERRAMENTAS


5.1. Time blocking: reservando blocos de atenção


Adote “horas protegidas” (90–120 min) para tarefas de alta complexidade (planejamento de aula, análise de dados pedagógicos), sem reuniões nem notificações. Crie um calendário de foco institucional (ex.: terças/qui, 9h–11h) e ajuste o fluxo de demandas para respeitar esses blocos. A literatura sustenta que minimizar interrupções preserva recursos cognitivos e reduz estresse.


5.2. Pomodoro adaptado à saúde mental


Use ciclos de 25–50 min de foco + 5–10 min de pausa, com pausas ativas (respiração, alongamento breve) e uma pausa maior a cada 3–4 ciclos. O alvo não é “ritualizar a técnica”, e sim treinar variabilidae esforço e recuperação, o que mantém energia ao longo da jornada escolar. Evidências de intervenções com docentes sugerem que combinar foco e regulação atencional reduz estresse e melhora sono.


5.3. Higiene digital: mindfulness e bloqueio de distrações


Para indivíduos, headspace (meditação guiada) apresentou redução de estresse em ensaios controlados; para equipes, políticas que limitam janelas de e-mail/WhatsApp e o uso de bloqueadores (p. ex., freedom) em janelas de foco aumentam atenção e reduzem pressão subjetiva. O ponto é padronizar regras simples e mensuráveis para todo o corpo escolar.


6. ESTUDOS DE CASO E EXEMPLOS REAIS


6.1. Rede pública (EUA): programa CARE para docentes


Um ensaio cluster randomizado com 32 escolas públicas de educação básica avaliou o programa CARE (Cultivating Awareness and Resilience in Education).


Resultados: redução de estresse e burnout, melhora de clima socioemocional e de indicadores de sono e humor em docentes que receberam a intervenção. Para redes de ensino, isso mostra que treinamento + rotina vence o improviso.


6.2. Trabalho sem e-mail contínuo: menos estresse fisiológico


Estudos em ambientes reais reduziram ou cortaram e-mail por curtos períodos; a variabilidade da frequência cardíaca indicou menor estresse e os participantes relataram maior foco. Escolas podem traduzir isso em duas janelas diárias para e-mail e canais assíncronos de plantão, em vez de “atenção permanente”.


7. RECOMENDAÇÕES PARA LÍDERES E EQUIPES


7.1. Cultura de foco coletivo


Defina janelas institucionais de foco sem reuniões (p. ex., 2 manhãs/semana) e compacte reuniões em slots curtos com pauta e decisão clara.


Padronize “etiqueta digital” (prazos padrão, respostas não imediatas fora de urgências, batching de e-mails). Expectativas claras reduzem conflito e estresse.


7.2. Espaços de descompressão e recuperação


Organize pausas ativas (5–10 min a cada 60–90 min) e crie espaços físicos/virtuais de recuperação breve. Evidências em docentes indicam que intervenções de regulação atencional e sono/recuperação melhoram humor e reduzem estresse.


7.3. Treinamentos e rodas de conversa


Implemente trilhas anuais de gestão emocional do tempo (combinação de técnica + regulação atencional), inspiradas em modelos como CARE, com aferição de indicadores (estresse percebido, sono, absenteísmo, intenção de desligamento). Conectar treinamento a políticas de agenda garante perenidade e ROI.


8. CONSIDERAÇÕES FINAIS


A evidência é consistente: menos multitarefa, mais foco estruturado e higiene digital reduzem estresse e sustentam produtividade. Em educação, isso se traduz em docentes com energia, equipes administrativas mais assertivas e clima escolar mais estável. O passo seguinte é pilotar: escolha 2–3 medidas (ex.: janelas de foco, e-mail em batch, pausas ativas + módulo CARE-like), defina indicadores e rode ciclos de 8–12 semanas.


Estabeleça uma semana-cobaia com reuniões compactadas e dois blocos institucionais de foco; meça estresse (escala curta), qualidade do sono e avanço de entregas. Compartilhe os resultados internamente e escale o que funcionar. A experiência prática combinada com essas boas evidências é o melhor antídoto contra o mito da multitarefa.


8. REFERÊNCIAS


BARBOSA, Christian. A tríade do tempo: família, trabalho, vida. São Paulo: Buzz Editora, 2018.


COSENZA, Ramon M. Neurociências e mindfulness: meditação, equilíbrio emocional e redução do estresse. Porto Alegre: Artmed, 2021.


OLIVER, Burkeman. Quatro Mil Semanas: gestão do tempo para mortais. Rio de Janeiro: Objetiva


NEWPORT, Cal. Trabalho focado - como ter sucesso em um mundo distraído: um modelo comprovado para organizar sua vida e aumentar sua produtividade e seu equilíbrio. Rio de Janeiro: Alta Books, 2018.


TONELLI, Guido. Tempo: o sonho de matar o Chronos. Rio de Janeiro: Zahar, 2023.


Texto sobre José Ricardo Mole, com um lápis desenhando uma linha.
Por JRM CONSULTORIA 15 de novembro de 2025
Introdução Em outubro de 2025, a Comissão Intergestores Tripartite (CIT) aprovou a Resolução nº 29/2025, que define as diretrizes do Prontuário Eletrônico do Sistema Único de Assistência Social (Prontuário SUAS). Publicada no Diário Oficial da União em 16 de outubro, a norma consolida o prontuário como um direito dos usuários do SUAS, articulado diretamente com a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD, Lei nº 13.709/2018). O prontuário deixa de ser apenas um formulário ou software e passa a ser um registro profissional estruturado, com finalidades claras: apoiar a garantia de direitos socioassistenciais por meio da vigilância socioassistencial, da gestão, da pesquisa e da execução de serviços e benefícios. Ao mesmo tempo, a resolução apresenta sete diretrizes centrais que envolvem integralidade da proteção, integralidade do trabalho social, ampliação de acesso, simplificação dos registros, interoperabilidade, proteção de dados e acesso diferencial por perfil de trabalhador. Do ponto de vista municipal, a Confederação Nacional de Municípios (CNM) destaca o potencial do Prontuário SUAS como instrumento de qualificação da gestão, mas alerta para a necessidade de atenção às regras e às exigências técnicas e financeiras para implementação. Em diálogo com experiências internacionais de prontuários eletrônicos em saúde e cuidados sociais, especialmente no Reino Unido, observa-se que a digitalização dos registros pode fortalecer a continuidade do cuidado, a integração entre políticas e a transparência, mas também traz desafios recorrentes: financiamento, infraestrutura de TI, qualificação de equipes, usabilidade de sistemas e governança de dados. O artigo a seguir aprofunda a análise da Resolução CIT nº 29/2025, discute seus desafios reais de implementação e aproxima o debate da experiência internacional, com foco no que isso significa para municípios e para quem atua na consultoria e no fortalecimento da gestão do SUAS. 1. O Prontuário Eletrônico do SUAS: marco regulatório e sentido político A Resolução CIT nº 29/2025 dispõe sobre diretrizes do Prontuário Eletrônico do SUAS, explicitando, logo no art. 1º, sua consonância com a LGPD. No art. 2º, o Prontuário SUAS é definido como direito dos indivíduos e das famílias usuárias do sistema, viabilizado por meio de um sistema autônomo, com finalidade de registro profissional de informações relativas ao conjunto de serviços e benefícios do SUAS. Isso tem implicações importantes: O prontuário não é apenas uma ferramenta administrativa, mas parte do conjunto de garantias de direitos. O registro passa a ser compreendido como dimensão ética e técnica do trabalho social. A unidade pública e a equipe de referência assumem responsabilidade direta pela guarda, confidencialidade e segurança das informações. O art. 3º reconhece que o prontuário contém dados pessoais, incluindo dados pessoais sensíveis, vinculados à finalidade de implementar a política de assistência social, o que exige aderência estrita à LGPD e às salvaguardas de proteção de dados. Já o art. 4º explicita que as informações devem ser utilizadas para assegurar direitos socioassistenciais por meio da vigilância, da gestão, da pesquisa e da execução dos serviços, vedando o tratamento dos dados para fins estranhos à política de assistência social. Em síntese: o Prontuário SUAS é reposicionado como um eixo de integração entre proteção social, gestão qualificada e proteção de dados, com responsabilidade jurídica clara para os entes federativos. 2. O que o Prontuário SUAS é e o que não é A partir da resolução, é possível delimitar com mais precisão o lugar do prontuário no SUAS. 2.1. O que ele é Um direito dos usuários do SUAS, não apenas uma exigência administrativa. Um registro profissional do trabalho social com famílias e indivíduos, preferencialmente em meio eletrônico, que deve refletir a integralidade dos serviços e benefícios utilizados. Uma ferramenta estratégica para vigilância socioassistencial, planejamento, monitoramento e avaliação, se os dados forem coletados e utilizados de forma consistente. Um repositório de dados pessoais sensíveis, protegido pela LGPD, o que implica obrigações legais claras em relação a finalidade, adequação, necessidade, segurança e não discriminação. 2.2. O que ele não deve ser Não é um repositório irrestrito de dados para qualquer uso governamental ou privado. Não é um sistema de vigilância social desvinculado da garantia de direitos. Não é apenas mais uma camada burocrática de registro, sem retorno para o trabalho de ponta. Não é um “banco de dados social” para ser utilizado comercialmente ou para fins de controle que extrapolem o escopo da assistência social. Essa delimitação é central para evitar usos indevidos, como cruzamentos de dados discriminatórios, seleção de beneficiários por critérios não transparentes ou compartilhamento com terceiros sem autorização ou base legal. 3. As diretrizes nucleares da Resolução CIT nº 29/2025 O art. 5º apresenta sete diretrizes que funcionam como roteiro técnico e ético para implementação do prontuário: Integralidade da proteção da pessoa e da família O prontuário deve permitir uma visão articulada da trajetória da família no SUAS, evitando registros fragmentados por serviço. Integralidade do trabalho social O sistema precisa apoiar o trabalho da equipe, permitindo registro qualificado de diagnósticos, planos de acompanhamento, encaminhamentos e resultados. Ampliação de acesso a direitos e proteção social Os dados devem ser usados para identificar lacunas de cobertura e vulnerabilidades, subsidiando ações proativas de busca ativa e proteção. Simplificação e facilitação de registros A lógica de design do sistema precisa considerar a carga de trabalho das equipes e a experiência dos usuários que desejam acessar seus dados. Interoperabilidade com outras políticas públicas O prontuário deve “conversar” com sistemas de saúde, educação, habitação, trabalho e renda, entre outros, usando padrões seguros e respeitando o sigilo. Proteção, privacidade e confidencialidade A resolução reafirma os princípios da LGPD, incluindo minimização de dados, segurança, não discriminação e responsabilização. Acesso diferencial por perfil O acesso deve ser regulado de acordo com cargo, função, unidade e formação, garantindo o princípio do “necessário para o trabalho” e evitando acesso indevido a dados sensíveis. Além disso, o art. 6º lista princípios como autenticidade, centralidade na família e no território, uso ético, transparência, eficiência e melhoria da gestão. 4. Análise crítica: desafios reais de implementação 4.1. Financiamento, infraestrutura e desigualdades federativas A resolução define o “o que” deve ser feito, mas não detalha mecanismos de financiamento nem cronogramas de implementação. Para os municípios, isso se traduz em: Necessidade de investir em equipamentos, conectividade, servidores, segurança cibernética e suporte técnico. Demanda de contratação ou capacitação de equipes de TI. Risco concreto de aprofundar desigualdades entre municípios com forte capacidade técnica e financeira e municípios pequenos, com alta demanda socioassistencial e pouca estrutura. A CNM destaca justamente essa preocupação ao orientar que gestores municipais fiquem atentos às exigências técnicas, de segurança e de guarda dos dados, reforçando a responsabilidade local. 4.2. Interoperabilidade como desafio de governança A diretriz de interoperabilidade é desejável, sobretudo em uma política que depende de articulação com saúde, educação e outras áreas. Porém, internacionalmente, a integração entre sistemas de registros sociais e de saúde tem se mostrado um desafio complexo, envolvendo padronização de dados, contratos com fornecedores, governança multiagência e compatibilidade tecnológica. No caso brasileiro, isso significa: Necessidade de definição de padrões nacionais de dados e APIs. Ajuste de sistemas legados municipais e estaduais. Governança federativa que coordene União, Estados e Municípios em torno de um modelo comum. 4.3. LGPD além do papel: cultura de proteção de dados A resolução está alinhada com a LGPD, mas o desafio é transformar essa aderência legal em cultura institucional. Isso implica: Formação sistemática de equipes do SUAS em proteção de dados, sigilo e uso ético da informação. Revisão de rotinas de atendimento, armazenamento e compartilhamento de dados. Estruturação de mecanismos de auditoria de acesso, registro de logs e resposta a incidentes. Experiências internacionais mostram que a proteção de dados em sistemas de registros eletrônicos depende tanto de tecnologia quanto de políticas claras e treinamento contínuo. 4.4. Qualidade da informação e uso para gestão A resolução cria as condições normativas para uso dos dados na vigilância socioassistencial, mas não garante, por si só, qualidade de informação. Sem: orientações claras sobre padrões mínimos de registro, acompanhamento da completude e consistência dos dados, indicadores de qualidade e uso da informação na gestão, há o risco de que o prontuário se torne mais uma obrigação formal, pouco conectada às decisões de gestão e às estratégias de proteção social. 5. Diálogo com experiências internacionais de prontuários eletrônicos Embora ainda seja limitada a literatura específica sobre prontuários eletrônicos na assistência social, há um conjunto crescente de estudos sobre digitalização de registros em cuidados sociais, especialmente em países que integram saúde e assistência. 5.1. Reino Unido: Digital Social Care Records No Reino Unido, o programa de Digital Social Care Records (DSCR) busca garantir que a maior parte dos serviços de cuidados sociais adultos use registros digitais interoperáveis até 2025. Alguns achados relevantes: Revisões rápidas de evidências apontam benefícios em continuidade do cuidado, compartilhamento seguro de informações, redução de registros duplicados e suporte à tomada de decisão. Ao mesmo tempo, relatórios indicam desafios relacionados à usabilidade dos sistemas, carga de registro para equipes, resistência à mudança e necessidade de apoio intensivo para provedores menores. Um estudo de escopo recente sobre implementação de registros digitais em cuidados sociais adultos destaca a importância de: definir expectativas realistas de benefícios no curto prazo, combinar investimento em tecnologia com investimento em pessoas e processos, adaptar soluções à realidade de serviços pequenos e dispersos. 5.2. Lições gerais para o SUAS Da leitura cruzada dessas experiências, emergem lições que dialogam diretamente com a implementação do Prontuário SUAS: Tecnologia não resolve sozinha Sistemas digitais só produzem ganhos quando vêm acompanhados de revisão de fluxos, treinamento e acompanhamento sistemático. Interoperabilidade exige governança, não apenas integração técnica É preciso clareza sobre quem decide padrões, quem financia integrações e como lidar com conflitos entre fornecedores e órgãos públicos. Capacidade dos pequenos provedores é um ponto sensível No caso brasileiro, isso se projeta nos municípios menores, com estruturas de TI e conectividade mais frágeis, que podem exigir modelos de apoio consorciado ou soluções mais simples, mas seguras. Avaliação é fundamental Evidências internacionais mostram que o impacto real em resultados de cuidado nem sempre é imediato e que falhas de implantação podem gerar frustração ou desconfiança. Essas lições reforçam a ideia de que a Resolução CIT nº 29/2025 é apenas o ponto de partida. A forma como União, Estados, Municípios e organizações da sociedade civil vão conduzir a implantação definirá se o prontuário será uma alavanca de qualificação do SUAS ou apenas mais uma obrigação. 6. Passos práticos para municípios e equipes gestoras Abaixo, um conjunto de passos práticos que podem orientar gestores municipais e equipes que desejam implementar o Prontuário SUAS em coerência com a resolução. 6.1. Diagnóstico de maturidade digital e de governança de dados Mapear equipamentos, conectividade, infraestrutura de TI e softwares já utilizados na rede socioassistencial. Identificar se há política municipal de proteção de dados e se existe pessoa ou unidade responsável pelo tema. Levantar rotinas atuais de registro e uso de informações: quem registra, em que formato, onde guarda, quem acessa. 6.2. Planejamento da solução tecnológica Verificar orientações do MDS sobre solução nacional, requisitos mínimos e padrões de interoperabilidade. Definir se o município adotará solução nacional, estadual, consorciada ou própria. Garantir que o sistema atenda às diretrizes de acesso diferencial, proteção de dados, registro qualificado e relatórios gerenciais. 6.3. Definição de papéis e responsabilidades Nomear uma instância responsável pela governança do prontuário (por exemplo, coordenação de vigilância socioassistencial em diálogo com TI). Atualizar ou elaborar política interna de privacidade e proteção de dados para o SUAS municipal, alinhada à LGPD e à resolução. Formalizar perfis de acesso por função, unidade e serviço. 6.4. Capacitação e acompanhamento das equipes Realizar formações específicas sobre: LGPD aplicada ao SUAS, sigilo profissional no ambiente digital, preenchimento qualificado do prontuário, uso dos dados para planejamento e vigilância. Produzir materiais simples (guias, fluxogramas, modelos de registro) para uso cotidiano das equipes de referência. Acompanhar, nos primeiros meses, dificuldades de uso do sistema e ajustar processos. 6.5. Pilotos, monitoramento e avaliação Iniciar com projetos-piloto em alguns serviços ou territórios, testando fluxos, indicadores e relatórios. Definir indicadores mínimos de acompanhamento, por exemplo: percentual de famílias com prontuário eletrônico ativo, completude dos campos essenciais, tempo médio entre atendimento e registro, número de acessos por perfil, incidentes de segurança registrados e tratados. Revisar periodicamente os resultados, comunicando aprendizados para toda a rede. 6.6. Cooperação intersetorial e federativa Articular com saúde, educação, habitação e outras políticas para planejar, desde cedo, a interoperabilidade, com acordos claros de compartilhamento de dados. Buscar apoio de consórcios, associações municipais e estados para soluções técnicas compartilhadas, especialmente para municípios com menor capacidade de investimento. 7. Limites, incertezas e pontos de atenção Alguns pontos ainda dependem de definição e acompanhamento: A Política Nacional de Privacidade e Proteção de Dados do Prontuário SUAS, a ser regulamentada pelo MDS, será decisiva para detalhar responsabilidades, padrões de segurança e fluxos de compartilhamento. Não há, até o momento, cronograma nacional público com metas graduais de implantação por tipo de município, o que pode gerar ritmos desiguais e incertezas. A experiência internacional mostra que, sem forte investimento em suporte e usabilidade, é comum a percepção de aumento de burocracia para as equipes de ponta, o que pode gerar resistência. A avaliação do impacto do Prontuário SUAS sobre resultados concretos de proteção social ainda dependerá de pesquisas futuras, já que o marco regulatório é recente. Quando essas definições forem publicadas, será importante atualizar diagnósticos, planos municipais e instrumentos de consultoria. 8. Considerações finais A Resolução CIT nº 29/2025 representa um avanço importante no esforço de modernização e qualificação do SUAS, ao colocar o prontuário no centro da relação entre direito à proteção social, gestão baseada em evidências e proteção de dados pessoais. Ao mesmo tempo, a experiência internacional com registros eletrônicos em saúde e cuidados sociais ensina que o sucesso não está garantido apenas pela existência da norma ou da tecnologia. Ele depende de: financiamento adequado, governança consistente, apoio intensivo às equipes na ponta, atenção às desigualdades entre municípios, capacidade de transformar dados em decisões concretas de proteção social. Para consultores, gestores e equipes técnicas, o Prontuário SUAS abre campo para repensar processos, pactuar responsabilidades e construir, de forma gradual, uma cultura de gestão orientada por dados e pelos direitos das famílias. Referências Confederação Nacional de Municípios. Publicada Resolução que define diretrizes do Prontuário Eletrônico do Suas. Portal CNM, 12 nov. 2025. Department of Health and Social Care (UK). A plan for digital health and social care. Government policy paper, 29 jun. 2022. Local Government Association. Implementing digital social care records. Briefing, 2024. Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. Publicada Resolução CIT nº 29, de 6 de outubro de 2025 – Diretrizes do Prontuário SUAS. Blog Rede SUAS, 16 out. 2025. Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome. Dados do Prontuário SUAS passam a ter mais segurança e transparência com novas diretrizes. Portal gov.br, 10 nov. 2025. The Strategy Unit / NHSX. Benefits of Digital Social Care Records. Relatório técnico, 2022. Noble, J. Choosing an electronic case management system for your organization. New Philanthropy Capital, jan. 2018.
Dois homens gritando um para o outro em megafones; estão em pé sobre uma superfície de tijolos em frente a uma parede de concreto.
Por José Ricardo Mole 8 de novembro de 2025
Resumo O artigo examina o papel fundamental da comunicação interna (CI) nas instituições educacionais (IE), defendendo que falhas estruturais e processuais nessa área constituem um gargalo sistêmico capaz de prejudicar a eficácia administrativa, a coesão pedagógica e o fortalecimento da cultura organizacional. A partir de uma revisão de literatura em comunicação organizacional e gestão educacional, são discutidos os impactos da fragmentação departamental, da comunicação descendente ineficaz e da ausência de canais de feedback ascendente sobre o alinhamento estratégico e o engajamento de docentes e técnicos-administrativos. O texto diagnostica consequências como o enfraquecimento do clima organizacional e a dificuldade de implementação de inovações, além de propor diretrizes para transformar a CI de função operacional em pilar estratégico na gestão da educação. Palavras-chave: Comunicação Interna; Gestão Educacional; Instituição Educacional; Cultura Organizacional; Comunicação Estratégica. 1. Introdução: o silêncio ruidoso nas instituições de ensino As instituições educacionais, sejam de ensino básico ou de assistência social, caracterizam-se por sua complexidade organizacional. Além da gestão de processos e recursos, são centros de produção e disseminação do conhecimento, envolvendo diferentes públicos internos: docentes, educando, discentes, educadores, gestores e técnicos-administrativos. Nesse contexto, a comunicação interna deveria funcionar como sistema nervoso central, alinhando objetivos, coordenando ações e promovendo um significado compartilhado. Contudo, observa-se que a CI é frequentemente relegada a um papel secundário, sendo vista apenas como função operacional e não estratégica (Kunsch, 2003; Welch, 2015). O resultado é um vácuo informacional, preenchido por ruídos, desinformação e boatos (“rádio-corredor”), fatores que prejudicam a inovação, minam a confiança e enfraquecem a missão institucional. Defende-se, neste artigo, que a negligência estratégica da CI é um dos fatores ocultos mais relevantes para a limitação da excelência educacional. 2. A anatomia do gargalo: diagnóstico das patologias comunicacionais 2.1 Insuficiência do fluxo descendente e ruído estratégico O fluxo descendente, que parte da alta gestão para os demais níveis, é frequentemente marcado por opacidade e excesso de burocracia. Decisões estratégicas importantes, como mudanças curriculares ou implantação de novas tecnologias, são comunicadas de forma tardia ou incompleta, favorecendo a proliferação de informações extraoficiais e a ansiedade entre os colaboradores (Rego, 2008). A falta de clareza e de contexto leva à resistência, desalinhamento estratégico e diminuição da confiança, mesmo quando os docentes não discordam das mudanças, mas não compreendem seus fundamentos. 2.2 Bloqueio do fluxo ascendente: a gestão que não escuta Tão prejudicial quanto falhar em informar é falhar em escutar. O fluxo ascendente, que permite que professores e técnicos relatem suas experiências e dificuldades, é fundamental para a inovação e o aprimoramento dos processos. A ausência de canais formais e seguros para feedback, somada à falta de cultura de escuta ativa, faz com que problemas permaneçam ocultos, prejudicando o ajuste institucional (Fauré, 2010). A CI não pode ser apenas difusora de mensagens, mas precisa garantir mecanismos de retorno e envolvimento dos colaboradores. 2.3 Fragmentação horizontal: os silos departamentais A comunicação horizontal, entre departamentos e setores, é frequentemente deficiente nas IE, que operam em “silos” isolados (Argenti, 2006). A falta de integração entre áreas como TI, biblioteca e setores pedagógicos impede a interdisciplinaridade, gera retrabalho e dificulta a experiência educacional integrada. Estruturas hierárquicas e departamentais, segundo estudos de redes organizacionais, impactam negativamente o fluxo de informações. 3. Impactos do gargalo no potencial educacional 3.1 Enfraquecimento da cultura organizacional e do engajamento A cultura organizacional é construída, mantida e transformada pela comunicação (Kunsch, 2003). Quando a CI é ineficaz, missão, visão e valores tornam-se meros discursos, e o engajamento dos colaboradores diminui. Isso resulta em absenteísmo, rotatividade e clima organizacional prejudicado, afetando inclusive a qualidade do ensino. Pesquisas apontam correlação positiva entre CI eficaz, satisfação e comprometimento organizacional. 3.2 Prejuízo à qualidade e inovação pedagógica Projetos pedagógicos inovadores dependem de coordenação, treinamento e alinhamento. O gargalo na CI dificulta a implementação de novas metodologias, pois falta entendimento comum e clareza sobre o suporte disponível. Estudos recentes mostram que os canais e estratégias de CI ainda são insuficientes diante dos desafios de inovação nas IE. 3.3 Ineficiência administrativa e desperdício de recursos No âmbito administrativo, a comunicação interna ineficaz resulta em lentidão, erros, retrabalho e desperdício de recursos. Falta de clareza em procedimentos consome tempo de docentes e técnicos, prejudicando atividades-fim e a agilidade institucional (Jakubiec, 2019). 4. Rompendo o gargalo: a comunicação como pilar estratégico Superar o gargalo comunicacional exige ressignificar a CI como função estratégica. Recomenda-se: Diagnóstico e planejamento integrado: realizar auditoria da CI para mapear fluxos, ruídos e canais preferidos, integrando a comunicação ao planejamento estratégico (PPP, PDI). Liderança comunicativa: capacitar gestores como comunicadores, promovendo transparência e canais diretos de diálogo (reuniões, comunicados claros, eventos de aproximação). Canais múltiplos e escuta ativa: utilizar ferramentas digitais e presenciais, criar canais de feedback (pesquisas de clima, ouvidoria, fóruns) e incentivar a participação dos colaboradores. Foco na integração horizontal: promover comitês interdisciplinares, projetos colaborativos e plataformas que facilitem o contato entre setores. Avaliação contínua e feedback: estabelecer indicadores de eficácia, monitorar e ajustar periodicamente as estratégias de CI, valorizando dimensões como confiança e transparência. 5. Conclusão Instituições educacionais que falham em comunicar-se internamente dificilmente conseguem transmitir valor externamente. A comunicação interna deficiente é um gargalo silencioso, porém corrosivo, que compromete o alinhamento estratégico, o capital humano e a capacidade de inovar. Investir em CI é investir diretamente na qualidade pedagógica e na saúde organizacional, promovendo uma comunidade de aprendizagem integrada, engajada e alinhada ao propósito institucional.  Referências Barros, F. R. de; Lima, H. da C. G.; Oliveira, J. V. F. de; Faustino, L. R.; Muglia, T. B. (2024). Institutional communication strategies in higher education institutions: a systematic literature review. Educationis, v.12 n.2. Aziz, F. R.; Kowiyanto, K.; Hasdiana, H. (2025). Internal Communication in Building a Positive Corporate Culture. INJOSEDU. Hussein, Q. (2025). Employee Satisfaction with Internal Communication in Higher Education: A study of Al-Istiqlal University. Dibon Journal of Education, 1(2). Silva Noro, C. A.; Cruz, C. M. L.; Kleber, A. E. (2024). Organizational communication in higher education institutions: An analysis of benefits and challenges in a systematic literature review. Welch, M. (2015). Internal communication education: A historical study. Journal of Communication Management, 19(4). Salmond, T.; Salamondra, T. (2022). Effective Communication in Schools. (PDF).